quarta-feira, 9 de maio de 2012

As cartas


Juan Ramón Jiménez abriu o envelope em sua cama de hospital, nos arredores de Madri.

Leu a carta, admirou a fotografia. “Graças aos seus poemas, não estou mais sozinha. Quanto pensei no senhor!”, confessava Georgina Hübner, a desconhecida admiradora que enviava, de longe, sua primeira carta a ele. O papel rosado cheirava a rosas, e estava pintada de anilinas rosadas a foto da dama que sorria, balançando numa rede, no roseiral de Lima.

O poeta respondeu. E algum tempo depois o barco levou para a Espanha uma nova carta de Georgina. Ela recriminava o tom cerimonioso dele. E viajou ao Peru a desculpa de Juan Ramón, “peço-lhe perdão se dei à senhora a impressão de formalidade, e creia, a culpa é de minha inimiga, a timidez.”  E foram sucedendo-se as cartas as cartas que lentamente navegavam entre o norte e o sul, entre o poeta doente e sua leitora apaixonada.

Quando Juan Ramón teve alta, e regressou à sua casa de Andaluzia, a primeira coisa que fez foi enviar a Georgina o emocionado testemunho de sua gratidão, e ela respondeu palavras que fizeram com que a mão dele tremesse.

As cartas de Georgina eram obra coletiva. Um grupo de amigos as escrevia em uma taverna de Lima. Eles tinham inventado tudo: a foto, o nome, as cartas, a delicada caligrafia. Toda vez que chegava uma carta de Juan Ramón, os amigos se reuniam, discutiam a resposta e punham mãos a obra.

Com o passar do tempo, carta vai, carta vem, as coisas foram mudando. Planejavam uma carta e acabavam escrevendo outra, muito mais livre e voadora, talvez ditada por aquela filha de todos eles que não se parecia com nenhum e a nenhum obedecia.

Nisso, chegou a carta de Juan Ramón anunciando sua viagem. O poeta iria embarcar para Lima, para a mulher que tinha lhe devolvido a saúde e a alegria.

Reunião de emergência: o que se podia fazer? Confessar tudo? Cometer essa crueldade? Discutiram o assunto durante horas e horas, até que chegaram a uma decisão.

No dia seguinte o cônsul do Peru na Andaluzia bateu na porta de Juan Ramón, nos olivais de Moguer. O cônsul tinha recebido um telegrama  urgente de Lima: “Georgina Hübner morreu”.



 Eduardo Galeano - Bocas do Tempo

sábado, 22 de janeiro de 2011

notícia de jornal



Sendo este um jornal por excelência, e por excelência dos precisa-se e oferece-se, vou pôr um anúncio em negrito: precisa-se de alguém homem ou mulher que ajude uma pessoa a ficar contente porque esta está tão contente que não pode ficar sozinha com a alegria, e precisa reparti-la.
Paga-se extraordinariamente bem: minuto por minuto paga-se com a própria alegria.
É urgente pois a alegria dessa pessoa é fugaz como estrelas cadentes, que até parece que só se as viu depois que tombaram; precisa-se urgente antes da noite cair porque a noite é muito perigosa e nenhuma ajuda é possível e fica tarde demais.
Essa pessoa que atenda ao anúncio só tem folga depois que passa o horror do domingo que fere.
Não faz mal que venha uma pessoa triste porque a alegria que se dá é tão grande que se tem que a repartir antes que se transforme em drama.
Implora-se também que venha, implora-se com a humildade da alegria-sem-motivo.
Em troca oferece-se também uma casa com todas as luzes acesas como numa festa de bailarinos.
Dá-se o direito de dispor da copa e da cozinha, e da sala de estar.
P.S. Não se precisa de prática. E se pede desculpa por estar num anúncio a dilarecerar os outros. Mas juro que há em meu rosto sério uma alegria até mesmo divina para dar.

Clarice Lispector in "A Descoberta do Mundo" Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1999

O Pequeno Príncipe





"E foi então que apareceu a raposa:
- Bom dia, disse a raposa.
- Bom dia, respondeu polidamente o principezinho, que se voltou, mas não viu nada.
- Eu estou aqui, disse a voz, debaixo da macieira…
- Quem és tu? perguntou o principezinho. Tu és bem bonita…
- Sou uma raposa, disse a raposa.
- Vem brincar comigo, propôs o principezinho. Estou tão triste…
- Eu não posso brincar contigo, disse a raposa. Não me cativaram ainda.
- Ah! desculpa, disse o principezinho.
Após uma reflexão, acrescentou:
- Que quer dizer "cativar"?
- Tu não és daqui, disse a raposa. Que procuras?
- Procuro os homens, disse o principezinho. Que quer dizer "cativar"?
- Os homens, disse a raposa, têm fuzis e caçam. É bem incômodo! Criam galinhas também. É a única coisa interessante que fazem. Tu procuras galinhas?
- Não, disse o principezinho. Eu procuro amigos. Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços…"
- Criar laços?
- Exatamente, disse a raposa. Tu não és para mim senão um garoto inteiramente igual a cem mil outros garotos. E eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens também necessidade de mim. Não passo a teus olhos de uma raposa igual a cem mil outras raposas. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo. E eu serei para ti única no mundo…
- Começo a compreender, disse o principezinho. Existe uma flor… eu creio que ela me cativou…
- É possível, disse a raposa. Vê-se tanta coisa na Terra…
- Oh! não foi na Terra, disse o principezinho.
A raposa pareceu intrigada:
- Num outro planeta?
- Sim.
- Há caçadores nesse planeta?
- Não.
- Que bom! E galinhas?
- Também não.
- Nada é perfeito, suspirou a raposa.
Mas a raposa voltou à sua idéia.
- Minha vida é monótona. Eu caço as galinhas e os homens me caçam. Todas as galinhas se parecem e todos os homens se parecem também. E por isso eu me aborreço um pouco. Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros. Os outros passos me fazem entrar debaixo da terra. O teu me chamará para fora da toca, como se fosse música. E depois, olha! Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste!
Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo…A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe:
- Por favor… cativa-me! disse ela.
- Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer alguma coisa. Compram tudo prontinho nas lojas.
Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me!- Que é preciso fazer? perguntou o principezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal-entendidos. Mas, cada dia, te sentarás mais perto…
No dia seguinte o principezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração… É preciso ritos.
- Que é um rito? perguntou o principezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias!
Assim o principezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou a hora da partida, a raposa disse:
- Ah! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o principezinho, eu não queria te fazer mal;
mas tu quiseste que eu te cativasse…
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou:
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o principezinho rever as rosas:
- Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras.
Mas eu fiz dela um amigo. Ela á agora única no mundo.E as rosas estavam desapontadas.
-
Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.E voltou, então, à raposa:
- Adeus, disse ele…
- Adeus, disse a raposa.
Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
-
Foi o tempo que perdeste com tua rosa que fez tua rosa tão importante.- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa… repetiu o principezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer.
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa…- Eu sou responsável pela minha rosa… repetiu o principezinho, a fim de se lembrar."

PAIXÃO



É assunto para abordar com a maior humildade, de tão complicado. Um vislumbre adivinha nele aspectos biológicos e culturais: o sexo operando a seleção natural, milênios de cultura manipulando nossas escolhas. Freud dizia que o ego é como um cavaleiro montado: algumas vezes ele direciona o cavalo; algumas outras o cavalo toma a rédea nos dentes e faz do cavaleiro o que ele quer. A paixão costuma ser uma dessas ocasiões. 

A palavra latina que deu origem a paixão, passio, só permite uma tradução: "sofrimento". Parece estranho, mas quem nunca estranhou a expressão "Paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo"? Pois essa paixão se refere ao seu sofrimento no Calvário. Mas é claro que quando pensamos em paixão hoje, raramente nos ocorre a parte do sofrimento. Nós nos lembramos logo do encantamento, do glamour, da intensidade de sentimentos, daquilo que alguns dizem ser a única sensação de estar vivo, do "Não me sai da cabeça", do "Meu coração traiçoeiro batia mais que um tambor, tremia mais que as maracas, descompassado de amor" (Aldir Blanc). De uma química poderosa em ação. De um barato, uma viagem.

Será possível ficar com a parte boa e escapar do sofrimento? Vamos ver o que podemos entender da paixão para tentar responder essa pergunta. O que tenho visto é que paixão não é uma coisa só, e aí está a razão pela qual fica difícil defini-Ia. Nessa tentativa de compreensão, vamos dividi- Ia entre a paixão que não deu encrenca, o estado apaixonante, e a paixão doente, a patologia da paixão. O estado apaixonante é aquele em que dizemos: "Meu trabalho é apaixonante”; "Esse livro é apaixonante"; "Fulana tem uma personalidade apaixonante", e estamos querendo dizer que o trabalho, o livro ou fulana são capazes de produzir o encontro do nosso desejo com seu objeto, que são capazes de nos empolgar, nos absorver por inteiro enquanto estamos lidando com eles. Nunca quer dizer que estaremos obcecados e tiranizados por eles, que nossa vida não valerá nada sem eles, que consideramos seriamente o suicídio no caso de não tê-Ios.

A patologia da paixão acontece quando ela descamba para uma obsessão, para uma tirania cruel, um jogo de domínio ou para a loucura (em psicanálise: paixão neurótica, perversa ou psicótica). Quem viu o filme Atração fatal, assistiu a um exemplo de paixão psicótica: um encontro sexual é base para a mulher forçar das maneiras mais violentas a "eternização" do encontro. Paixões em que um manipula o outro e o faz sofrer, e se diverte com sua devoção abjeta, como na música do Jacques Brel, “Ne me quittes pas", são exemplos de paixão perversa, sadomasoquista. A paixão neurótica, nossa vida nas mãos de uma pessoa que tem poderes de imperador romano sobre nós, "Toca, telefone, toca", "Não consigo parar de pensar", "Eu não existo sem você", ciúmes terríveis, oferecimento de devoção, cobrança de devoção, fazer besteira, dizer besteira, ficar bobo, alternância de amor com ódio, entrega absoluta nos momentos que dão certo, desejo de vingança nos que dão errado, e se ferrar sistematicamente no final, essas coisas são ou nossas ou muito próximas de nós.

Mas como isso se dá? A resposta é uma só: aprendizado afetivo de má qualidade. Quem foi abandonado, desprezado, desconsiderado, maltratado, abusado, tomado vassalo afetivo, escravo, devoto de seus instrutores afetivos (geralmente os pais, mas sem exclusividade: nem sempre são os pais as figuras mais importantes da nossa infância). Ou, por outro lado, foi paparicado, tomado o reizinho da casa, ou o tirano do shopping center, aquele cujas vontades todos fazem se ele espemear, ou foi solicitado a ser o salvador de um dos pais, confidente e cúmplice contra o outro, que foi obrigado a tomar partido na briga deles, enfim, aquele que não pode ser simplesmente uma criança segura de seu lugar em casa e considerada como pessoa, bem, esse está com a afetividade entalada na garganta. Vai buscar alguém com quem possa desentalá-la. Esse alguém não é qualquer um, mas aquele que tiver características semelhantes a quem causou a encrenca afetiva.

É esse alguém que vai despertar em nós a paixão neurótica. É esse alguém que vai provocar todos os cliques na nossa cabeça sem que ao menos nos demos conta, ate que seja tarde demais. É esse alguém que vai receber uma missão impossível: sendo parecidíssimo com quem causou a encrenca afetiva, deverá corrigi-Ia. Sendo um narcisista, ter consideração por nós e nos dar reconhecimento. Sendo um sádico, nos tratar bem. Sendo mimado, cuidar de nós. É isso que causa o célebre comentário: "Eu não sei por que sempre escolho o mesmo tipo de pessoa e sempre dá errado".

É a crônica da morte anunciada. Não pode funcionar. Depois de um começo cheio de ilusões e de esperança o encantamento desanda, o escolhido não cumpre o que esperávamos dele, não conseguimos convertê-lo no desentalador da nossa afetividade atravessada, no curador de nossas tristezas passadas, e vem um período que corresponde àquele sentido latino da paixão: o sofrimento. Uma alternância de esperança com desejo de vingança, sendo que a vingança também guarda uma esperança dentro dela, a mesma que os pais têm em relação aos filhos: quem sabe se punidos eles não aprendem?  

É verdade que nem todas as vinganças tomam a proporção épica daquela da ministra Zélia, que escreveu um livro para crucificar publicamente seu sedutor. A mais comum das vinganças é dar um gelo… e ficar torcendo para que o outro ligue. É por isso que a coisa fica nesse vai-e-vem, nessa agonia durante muito tempo. Numa boa paixão neurótica o outro pode não sair da sua cabeça por uns dez anos, ou até a próxima paixão, o que vier primeiro.

Mas se é verdade o que estou afirmando, então nossa educação afetiva é um desastre, já que a paixão neurótica é tão comum. Bom, pelo menos nesse aspecto é só você olhar em tomo e olhar para dentro para ver se estou errado ou não. Outra coisa que parece estranha é a "escolha". Como podemos ser tão certeiros na crônica da morte anunciada se às vezes o objeto da paixão é "escolhido" num relance, a tal da paixão à primeira vista. É que não nos damos conta da rapidez com que reconhecemos traços que nos são familiares numa pessoa. Ao ver alguém pela primeira vez fazemos uma varredura antropológica sem saber, de tal maneira que, se depois nos perguntassem características da tal pessoa, poderíamos falar muito sobre sua etnia, classe social, escolaridade, jeito de pensar, orientação sexual etc. só por ter visto sua maneira de vestir, de se adornar, de cortar o cabelo, de falar, sua linguagem corporal etc.

Existe então uma linha de montagem na paixão neurótica que podia ser descrita assim: mau aprendizado afetivo – "escolha" desastrada – idealização da pessoa – relação irreal com o idealizado e não com a pessoa. A partir daí a paixão vira uma aposta: ou você consegue a "conversão" da pessoa no seu ideal, ou você fica putíssimo e quer vingança. O resultado nós conhecemos.

Será que não dá para escapar dessa sina? Bem, existem agravantes e atenuantes. Quanto mais troncho foi o aprendizado afetivo, mais vulneráveis à paixão patológica nós ficamos. Também não ajuda o fato de Platão ter infundido na cultura aquela história das metades da maçã que um dia iriam se encontrar, porque põe excessivamente no outro a responsabilidade da paixão dar certo: "Se não deu certo é porque não era a cara-metade para mim destinada. Isso é um estímulo a se pular de uma paixão para outra sem um mínimo de auto questionamento. 

Outro atrapalhador é o ideal da paixão romântica. Na época das cruzadas, uns oitocentos anos atrás, os cavaleiros iam para o Oriente Médio deixando suas mulheres sozinhas, nos castelos, o que representava um sério risco de voltarem com a testa ornamentada. Mas voltaram, isso sim, com uma novidade em termos de aprendizado religioso: o culto à Virgem Maria, comum em Bizâncio e ausente até então na Europa. A partir daí inventou-se a paixão romântica, o culto à puríssima dama, a quem se devia dedicar um amor, não o reles amor carnal, baixo, sujo, animalesco, mas o amor romântico pela deusa, no alto do pedestal, adorada e casta, tanto mais adorada quanto mais casta. Os trovadores cantavam  esse amor e os homens que tinham ficado para trás se convenciam dele. Isso acabou se constituindo num cinto de castidade mais eficaz do que os de ferro e cadeado, mais folclóricos que realmente usados. E também reforçou imensamente em nós a tendência de pensar as mulheres ou como santas ou como prostitutas. Enfim, essa praga que atinge homens e …, mulheres.

Vícios culturais também agravam o destino das paixões. Na cultura do Rio de Janeiro existe, por exemplo, um que é atroz. A tão afamada cordialidade carioca é em parte o hábito de tomar intimidade imediata como se fosse demonstração de amizade. É uma triste confusão. O ex-presidente Jânio Quadros uma vez foi abordado por uma repórter carioca: "E aí, Jânio, o que há de novo?". Ele parou por um momento e respondeu: "Essa nossa intimidade. Minha jovem, intimidade só traz aborrecimento e filhos, e não quero nenhum dos dois com a senhorita". A intimidade é um bem precioso, de uso exclusivo de seu proprietário. A ele cabe concedê-Ia por empréstimo temporário e não automaticamente renovável a quem ele achar que merece. Ser íntimo não é o mesmo que gostar, nem sequer é querer bem. Aquela minha turma de colégio foi um bom exemplo disso. Eu só quero repetir a reunião daqui a dezoito anos justamente para poder recuperar a intimidade que era minha e que me foi seqüestrada. Tomar intimidades com o outro, ou melhor, do outro, como uma forma de consolidação externa da relação equivale a perder a individualidade e o respeito pelo outro. É empastelar-se, fundir as vidas, o que muitos, infelizmente, julgam desejável. É um meio seguro de conduzir à patologia da paixão.

Por fim me ocorre, como uma última e séria agravante para a patologia da paixão, a promoção apressada e descuidada. Um princípio gerencial americano afirma que todos acabam sendo incompetentes porque tendem a ser promovidos por mérito até a posição em que se atrapalham. De lá não podem ser rebaixados; ou são demitidos ou se eternizam na incompetência. Assim, um ótimo vendedor é, por ser ótimo, promovido a gerente. Vira um péssimo gerente a atrapalhar a empresa. O mesmo se aplica às relações afetivas. Um bom e apaixonante encontro é apressadamente promovido a namoro. E se toma uma complicação. Promover um bom namoro a casamento então, nem se fala. É coisa que merece o mais extremo cuidado, caso contrário, olha a patologia da paixão aparecendo outra vez.

Como atenuante da patologia da paixão, a consciência de seu aprendizado afetivo e do que representa a paixão ajuda muito. Tenho, através da psicanálise, prestado "assistência técnica" a muitas paixões. Essa intervenção diminui a patologia das paixões. Mas se a pessoa escolhida, o objeto da paixão, é excessivamente parecida com os causadores originais do problema afetivo, aí não tem jeito, é caso perdido, ou como dizia um poema do Manuel Bandeira ("Pneumotórax"), só tocando um tango argentino. Pareceria simples então dizer: "Trate de se apaixonar por alguém com características diferentes". Não funciona. Isso não dá em paixão. Pode dar numa bela amizade, no máximo. O desejo está marcado para sempre com a história de cada um. Mas à medida que a pessoa vai aprendendo sobre si, ela se mete em roubadas cada vez mais suaves. E nessas, talvez, aquela aposta de conversão pode vir a funcionar.


Do livro “O APRENDIZ DO DESEJO – A adolescência pela vida afora” –, do psicanalista Francisco Daudt da Veiga

...de todo amor não terminado...


Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!



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